MAIS DESASSOMBRO E MENOS PRUDÊNCIA : Gilberto Freyre

Ao manifesto dos arcebispos brasileiros em face da atitude do Brasil na guerra contra o nazismo não falta elegância de expressão. Sua prudência é que é excessiva. Faz de documento tão ilustre um convencional abaixo-assinado. Quando a verdade é que o excepcional das circunstâncias parecia exigir palavras do mais claro desassombro. Desassombro que não é menos das tradições do Cristianismo e da Igreja que as atitudes de tato, de fleugma, de reserva, de discreção.
Pois o Brasil, tomando atitude contra as chamadas "Potências do Eixo", não entrou numa guerra igual às outras, mas num conflito em que sua participação moral vem dos primeiros dias de definição e afirmação do mesmo nazismo como movimento contrário ao Cristianismo e contrário ao amalgamamento de culturas e de raças que, à sombra do mesmo Cristianismo e sob o estímulo dos próprios reis cristãos de Portugal, são praticados entre nós desde os remotos começos da sociedade brasileira. Quando o hitlerismo levanta o seu estandarte pagão e faz suar sua tuba insolentemente germânica contra os princípios cristãos em geral e contra o da fraternidade entre os povos de raça diversa, em particular, dificilmente se concebe, num povo da América indo-hispânica e cristã, outro sentimento em face de programa tão agressivo às nações mestiças senão franca repulsa. Era dêsse sentimento que esperávamos todos encontrar a expressão elegantemente episcopal, é certo, mas ao mesmo tempo desassombradamente cristã e americana, no manifesto dos arcebispos brasileiros; e não simples palavras de apoio ao Presidente da República pela atitude enérgica que tomara em face de torpedeamento de navios do Brasil por submarinos nazistas ou fascistas.
Porque êsse excesso todo de reserva e de discrição de tato e de prudência da parte de SS. Excias.? Porque tanto afã em deixar, pelo escândalo do contraste, um bispo como o de Maura - que antes telegrafara de São Paulo ao Presidente Vargas denunciando atividades nazistas e fascistas, de religiosos ou de indivíduos disfarçados seràficamente em frades e padres, à sombra da Igreja no Brasil - simplesmente como novo "testa calda" leviano, exagerado e tão sem razões a ponto de parecer sem razão? Amanhã talvez se liga do novo "testa calda" que foi quem mais perto esteve dos seus deveres de bispo brasileiro nos dias dolorosos que o Cristianismo atravessa e em face do hitlerismo desembestado. Foi no Brasil quem falou contra o nazismo com desassombro igual ao do antigo arcebispo de Paris, ao do cardeal Hinsley, e ao de Buenos Aires; com energia igual à dos arcebispos anglo-católicos de Canterbury e de York; com a unção de todos os grandes leaders cristãos que desde Pio XI se manifestam contra o racismo e contra o fascismo em palavras claras e vigorosas.
Um artigo escrito há pouco, do seu retiro de Barbacena, no interior do Brasil, pelo sr. George Bernanos para os "Diários Associados", sob o título A Conspiração contra as Consciências, me fez voltar às páginas de um livro ao mesmo tempo ortodoxo e consciencioso - assim o julgou a crítica mais autorizada - de autor igualmente cristão e igualmente desassombrado na expressão de suas idéias: Autorité et Liberté, de Fr. W. Foerster. Livro que os arcebispos brasileiros parecem ter esquecido de todo ao redigirem seu manifesto.
O grande francês que hoje enriquece o Brasil com a sua presença não só de escritor mas de católico feriu um ponto - o da liberdade em face da autoridade religiosa - que é o assunto do livro inteiro de Fr. W. Foerster. Nenhum dêles parece compreender certos abafos de opinião honesta e respeitável - que, tão-pouco compreendo eu - em nome de um "respeito à autoridade" e de um "acatamento à Igreja", conforme simples conveniências de momento. Ou então para não se desgostar algum chefe ilustre; para nem sequer arranhar-se de leve em qualquer dos seus melindres de pessoa distinta invertida de autoridade religiosa.
De Fr. W. Foerster não é difícil recolher sôbre o assunto palavra que merecem a leitura atenta dos ortodoxos excessivamente "nervosos" em face de tudo que possa roçar menos maciamente pelo veludo das sensibilidades arquiepiscopais que representam a autoridade. Estas palavras, por exemplo, à pagina 152 da segunda edição do Autorité et Liberté, se impõem à atenção dos tais "nervosos"; e talvez possam acalmá-los e conter suas intolerâncias mais ásperas: "Êsse tremor pela integridade da doutrina de que falámos acima, essa intolerância nervosa com relação a novas correntes se explica bem naquelas confissões religiosas que não dispõem de autoridade constituída nem de tribunal reconhecido para a preservação do dogma. Mas na Igreja regida por autoridade forte e enraïzada na história, que garante os fundamentos da fé, os indivíduos e os partidos não têm que preocupar-se com a conservação de doutrinas e o choque solubre e necessário de espíritos uns com os outros deve, ao contrário, ser elevado pela liberdade de discussão e pela serenidade interior".
Não me parece a Igreja do Brasil constitua excepção à tranqüila estabilidade de doutrina e de fé da Igreja, em geral, e se encontre tão fraca ou instável naquele plano que lhe faça dano ou mossa qualquer "entrechoque salubre" de opiniões, como as há pouco se levantaram, provocadas pelas declarações de um bispo brasileiro: o de Maura. Mesmo que ao bispo de Maura faltem de todo razões - razões de qualquer espécie - para a atitude que assumiu, o problema ferido por S. Revma existe. Existe e deve ser enfrentado, vasculhado e esclarecido para bem da Igreja e bem do Brasil e da América. E não afastado como invenção de "comunistas", "agitadores" e, agora, de "gente nervosa" e "sem razão", ao mesmo tempo que "sem razões".
Nem se compreende que a "nervosos" - "nervosos" da ortodoxia, é claro - toque o privilégio de taxar de "comunista" ou "agitador" quanto acatólico honesto se preocupe com problemas que, sendo católicos, são também brasileiros e americanos, enquanto qualquer defesa da parte do acusado desperta vocações inquisitoriais onde elas menos deveriam existir. Tal situação é verdadeiramente incompreensível. Incompreensível do ponto de vista "liberal" e incompreensível do ponto de vista católico.
É ainda de mestre Foerster esta lição que tomo a liberdade - audácia das audácias nestes dias difíceis, mesmo quando o afoito tem amigas na praça. . . liberal - de transmitir aos "nervosos" brasileiros da ortodoxia que só entregam os interêsses - aliás respeitáveis dentro dos seus limites - da Autoridade: "Na Igreja - diz Fr. Foerster - os que pertencem à direita não mentiriam às suas convições, dizendo: "em nome da catolicidade deve haver uma esquerda na Igreja". E acrescenta Fr. W. Foerster existirem na Igreja católicos que entendem ser desejável "a exclusão dos Jesuítas". Êle, Foerster, considera legítima "tôda oposição à supremacia de um grupo. . ." (pag. 153). Mas à supremacia e não ao grupo em si. E recorda o autor de Autorité et Liberté os "serviços consideráveis" dos Jesuítas à Igreja. O belo, o justo, o saudável - acrescentemos a Fr. Foerster - é que a Igreja Católica, Apostólica e Romana continue ao mesmo tempo una e plural - com Dominicanos, Franciscanos, Jesuítas, Carmelitas, obedientes ao mesmo Papa. Como o belo, o justo, o saudável é que o Brasil, ou antes as Américas, formem uma vasta comunidade cristã em que várias tradições de pensamento cristão se forçam sentir; e não apenas a jesuítica.
Êste, ao meu ver, é o ponto de vista verdadeiramente cristão e americano; o critério verdadeiramente católico de unidade sem prejuízo da pluralidade de tendências e opiniões; a verdadeira conciliação da liberdade cristã com a autoridade eclesiástica. E se tal critério - e não a identificação absoluta da Igreja com o grupo porventura predominante - deve regular as relações dos espíritos dentro do Catolicismo, assegurando-lhe saúde moral e equilibrio intelectual, com maioria de razões parece dever o mesmo critério orientar aquelas instituições - inclusive jornais - que, não sendo rigorosamente órgão da Igreja, embora simpáticos à sua doutrina, à sua obra e às figuras eminentes dos seus chefes, têm, dentro da ética não só liberal - de que tanto falam - como cristã, o dever de acatar divergências respeitável e de intenção honesta.
Source: FREYRE, Gilberto. Mais desassombro e menos prudência. Rumo. Rio de Janeiro, n. 1, p. 2, p. 13-16, jul./set. 1943.
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