O PADRE FEIJÓ E A QUESTÃO DO CELIBATO CLERICAL

autor:
ISNARD DE ALBUQUERQUE CÂMARA NETO
Departamento de Ciências Sociais e Letras
Universidade de Taubaté
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é apresentar os embates do Padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843) em relação à Igreja
Católica. A maior parte dos pesquisadores, normalmente, aborda a atuação política de Feijó como governante durante a
Regência, deputado paulista às Cortes de Lisboa (1821), deputado geral (1826-1829 e 1830-1833) e senador (1833) em
temas alheios a História da Igreja. Relegados a um plano secundário são seus combates contra o episcopado da época, em
virtude de sua defesa pela supressão do celibato. Propõe-se, pois, essa faceta de Feijó – um padre que ia de encontro aos
interesses de sua própria Igreja – como um convite para maiores aprofundamentos por parte dos historiadores.
PALAVRAS-CHAVE: catolicismo; celibato clerical; Brasil
I
NTRODUÇÃO: A COMPOSIÇÃO DE FORÇAS
Após a independência surgem as primeiras
idéias de uma reforma católica no Brasil, com duas
tendências bem distintas. A primeira, com o Padre
Antônio Feijó na liderança de boa parte do clero paulista
entre 1826 e 1842, período de sua vida como deputado
de São Paulo (1826), ministro da Justiça (1831), senador
do Rio de Janeiro (1833) e, finalmente, regente (1835-
1837). Defendia Feijó a criação de uma Igreja brasileira,
desatrelada de Roma e tendo como centro de comando
um Concílio Nacional, política essa fundamentalmente
regalista e apoiada no padroado.
Para Feijó e seu grupo, dois problemas básicos
precisavam ser resolvidos. Um dizia respeito ao já
famoso “clero amasiado”, pois ainda corria o tempo em
que “ter filhos naturais era então a coisa mais natural
deste mundo. Sem exceção para os padres, que
costumavam ser muito bons padreadores.” (FRIEIRO,
1945, p. 16).
Assim, apoiavam pragmaticamente a supressão
do celibato, tendo Feijó, inclusive, em 1827, lançado o
folheto intitulado – Demonstração da necessidade da
abolição clerical pela Assembléia Geral do Brasil, e da
sua verdadeira e legítima competência nesta matéria.
A questão do celibato clerical reporta-se ao
Concílio de Elvira, em 305, válido somente para a
Espanha; mas, em 386, o papa Sirício (384-399)
estendeu-o a toda Igreja do Ocidente, posto que “sem
preocupações e liames familiares, podiam os clérigos
atender melhor à própria perfeição e às obras do
apostolado.” (AZZI, 1962, p. 49).
A outra vertente era dirigida por Dom Romualdo
Antônio de Seixas, arcebispo metropolitano da Bahia e
primaz do Brasil desde 1826, ano esse em que, como
Feijó, entra para a Câmara dos Deputados. D. Romualdo
propunha a formação de um clero observante do
celibato, subordinado a Roma e independente do
governo em assuntos espirituais. A questão, no entanto,
ganhava contornos consuetudinários por parte da
sociedade, pois “se criava uma espécie de consciência
comum de que o sacerdote podia, sem quebrar os seus
compromissos, na perspectiva jurídica, viver como os
leigos católicos na sociedade, incluindo mesmo o
costume de constituir família.” (LUSTOSA, 1985, p.
12)
A GUERRA DE DISCURSOS
O ano de 1827 assiste ao primeiro momento do
processo de reformismo, por meio da proposta de
Antônio Ferreira França, deputado pela Bahia, que
propunha, em 3 de setembro, que “o nosso clero seja
casado e que os frades e as freiras acabem entre nós”.
(ALMEIDA, 1951, p. 61), desencadeando com isso a
explosão de um barril de pólvora que há muito tempo
exsudava nas gavetas dos gabinetes imperiais, nas
igrejas, na imprensa e nas camadas mais cultas da
sociedade.
É possível imaginar-se que, decerto, por parte da
Igreja não era esse o caminho a ser trilhado para o início
de uma discussão, mas, bon gré ou mal gré, a atitude
intempestiva de Ferreira França possibilitou trazer a
lume uma questão há muito discutida de forma velada,
clarificando destarte o estado de coisas entre o Império e
a própria Igreja.
Dividiam-se as tendências entre os que eram a
favor da supressão do celibato, tais como o Padre Diogo
Antônio Feijó, Amaral Gurgel, Ildefonso Xavier
Ferreira, Marcelino Ferreira Bueno, dentre outros, e os
que eram contra, como Dom Romualdo Antônio de
Seixas, Dom Marcos de Souza, Padre Luís Gonçalves
dos Santos (o famoso padre Perereca) e o Visconde de
Cairu.
A resposta de Feijó em relação à proposta de
Ferreira França vem a 10 de outubro de 1827 no
seguinte parecer à Câmara, dando clara posição de suas
intenções, bem como propondo ameaças ao papa:
“primeiro, que autorize ao Governo para obter de Sua
Santidade a revogação das penas espirituais ao clérigo
que se casa; fazendo saber ao mesmo Santíssimo Padre
a necessidade de praticar, visto que a assembléia não
pode deixar de revogar a lei do celibato; segundo, que o
mesmo governo marque ao nosso plenipotenciário prazo
certo, e só o suficiente, em que deve definitivamente
receber da Santa Sé o deferimento dessa súplica;
terceiro, que no caso da Santa Sé recusar-se ao
requerido, o mesmo plenipotenciário declare a Sua
Santidade mui clara, e positivamente, que a assembléia
geral não derrogará a lei do celibato, mas suspenderá o
beneplácito de todas as leis eclesiásticas disciplinares
que estiverem em oposição aos seus decretos; e que o
governo fará manter a tranqüilidade e o sossego público
por todos os meios que estiverem ao seu alcance.”
(DORNAS FILHO, 1938, p. 56).
O REFORÇO VEM DE ROMA: O TERCEIRO
NÚNCIO APOSTÓLICO
De fato, a recomendação não fora leviana, pois o
Deputado Diogo Antônio Feijó fizera publicar na
imprensa um requerimento, datado de 11 de junho de
1830, cujo teor parece demonstrar com clareza a
hostilidade e a tentativa de embaraçar o múnus do
terceiro Núncio Apostólico, Monsenhor Ostini. Ei-lo:
“Constando haverem desembarcado
nesta corte o Núncio apostólico e mais alguns
eclesiásticos, requeiro se peça ao Governo
primeiro as credenciais ou bulas do dito
Núncio, caso ele venha com desígnio de
exercer jurisdição eclesiástica neste Império.
Segundo: o número dos eclesiásticos com
declaração de serem seculares ou regulares;
de que religião, de que nação, se foram
convidados pelo Governo, e para que fim, e
à custa de quem, e onde são conservados.”
(SILVEIRA, 1958, p. 426).
Parece, no entanto, que a Santa Sé enviara
alguém suficientemente habilidoso para o cargo, e o
Visconde de Alcântara, Ministro da Justiça e Negócios
Eclesiásticos, permitiu oralmente que o Núncio usasse
suas faculdades, lembrando-lhe, porém, que elaborasse
um elenco das mesmas, para ser mostrado às Câmaras.
Ostini, em sua correspondência com Roma, não esconde
sua contrariedade, denominando o documento de Feijó
de “insolente inquérito.” (ACCIOLY, 1949, p.266)
De qualquer forma, é possível notar-se a má
vontade da parte de Feijó para com o representante da
Santa Sé, e até mesmo para os assuntos de interesse da
Igreja. Sacerdote que era, investiu contra a ortodoxia
católica enquanto defensor da abolição do celibato,
posição essa que muito provavelmente proviesse “da
falta, em sua formação para o serviço do altar, de uma
vida em comum e sob uma direção mais adequada e
vigilante no internato de um Seminário.” (ALMEIDA,
1948, p. 618).
Em suma, não fugiu em demasia ao seu tempo,
quando os padres faziam parte das intrigas políticas e
pertenciam aos diversos clubes maçônicos.
Ostini, por sua vez, expressando-se em termos
escolhidos, tão comuns aos homens que gravitam em
torno do poder, dá a Pio VIII suas impressões sobre os
bispos do Brasil, informando-lhe que os mesmos “são
boas pessoas, e nada mais.” (ACCIOLY, 1949, p. 241).
VENCE A IGREJA
A 7 de abril de 1831, com a queda de D. Pedro I,
Feijó assume a Regência Trina Provisória, não
provocando alterações na jurisdição do Núncio. Todavia,
pode-se enquadrar, também no ano de 1831, a segunda
fase do processo de reformismo, quando o grupo de
Feijó apresenta à Assembléia Geral o projeto sobre o
matrimônio.
Relativamente simples em sua confecção, em
momento algum proíbe o clero de casar-se, atingindo
destarte, ainda que de forma indireta, o celibato clerical,
posto que as cláusulas impeditivas são bastante claras. A
força do Padroado, assim entendemos, mostra-se
presente já em sua introdução:
“Sendo o Contrato do Matrimônio o que
assegura a paz das famílias, educação dos
filhos, e os direitos que a Lei lhes concede
sobre os bens dos seus progenitores; tendo
sido o objeto dos cuidados de todos os
Legisladores, intervindo a mesma Religião
para santificá-lo com cerimônias sagradas,
não convém que aos Legisladores do Brasil
seja indiferente que os Eclesiásticos, a cujo
cargo tem estado a sua fiscalização,
continuem a ser arbitrários dispensadores
de condições e fórmulas essenciais ao mesmo
Contrato.” (LUSTOSA, 1985, p. 22) (grifo
nosso).
Prossegue a introdução do projeto, e os abusos
do clero frente às dispensas matrimoniais são forte
objeto de reparo:
“A Comissão Eclesiástica observando a
relaxação que por toda a parte se encontre
nas dispensas dos impedimentos
matrimoniais, a tal excesso, que o maior
número deles não existe senão para obrigar
os brasileiros a despesas inúteis, e algumas
vezes excessivas, que lhe são extorquidas
por diferentes pretextos,sem que jamais
semelhantes impedimentos obstem aos seus
contratos: tendo em vista que a liberdade
de culto, reconhecida pela Constituição,
introduz grande variedade na celebração
do matrimônio,que as antigas Leis não
providenciaram; e querendo remover tantos
abusos, dar firmeza e legalidade a
semelhantes contratos, oferece o seguinte
projeto:
A Assembléia Geral Legislativa decreta:
Art. 1o ) Só não pode contrair validamente
matrimônio:
1. O que se achar legitimamente casado.
2. O menor de 14 anos, e a menor de 12.
3. O parente em 1o grau de afinidade, seja
por cópula lícita, ou ilícita, sendo sabida
por mais de três pessoas.
4. O que cooperar ou consentir na morte
de um dos cônjuges, vivendo em adultério com ele, ou
com o fim de casar-se com o que, ou a que sobreviveu.
5.O filho de família ou escravo, sem o
consentimento do Pai, Tutor, ou Curador, ou Senhor, ou
sem consentimento do Juiz de Direito do lugar, depois
de os ouvir quando estes sem grave motivo o recusem.
6. O que se achar aterrado por fortes
ameaças, ou suposição de grandes males reais, ou
aparentes, com o fim de contrair matrimônio.
7. A que sendo raptada não estiver em lugar
seguro, onde possa livremente declarar sua vontade.
8. O que estiver enganado sobre qualidade
pessoal do cônjuge, e que antes do Contrato lhe
declarou ser condição necessária,e essencial ao
mesmo. A parte enganada só será admitida a provar o
engano dentro do primeiro mês de coabitação depois do
Contrato. Excetua-se o engano sobre a escravidão, que
poderá ser provada em qualquer tempo, em que
foi sabida.” (LUSTOSA, 1985, p. 22-23).
Feijó tinha perfeita consciência do baixo grau de
teor moral da maioria do clero de sua época. Sua visão
moralista e a condição de filho espúrio talvez fossem
fatores que o fizessem indispor-se tão frontalmente
contra a Igreja da qual era ministro.
Em 12 de março de 1832, seu aviso dirigido ao
episcopado é bem claro no que se refere ao estado da
Igreja, e engloba de forma cardeal a confusa equação
onde se misturam as conseqüências do padroado, da
religiosidade popular e do caráter epidérmico do culto.
Eis o trecho, primor de iluminismo: “A superstição, a
hipocrisia e meras exterioridades religiosas só servem
para desacreditar a verdadeira religião e tornarem-na
ridícula aos olhos do homem sensato, e objeto de
curiosidade e divertimento para com a multidão que
não pensa;"
Realizada esta reflexão, Feijó aponta
diretamente aqueles a quem julga serem os responsáveis
pelo problema, quais sejam, os bispos:
“Não podendo dissimular-se que a causa principal Apontados os responsáveis, seguem as
acusações aos padres, incluídas aí, como não poderiam
faltar, as festas, constante objeto de eternos atritos entre
o clero e os devotos:
“A negligência dos prelados em regular
o culto pelas leis da Igreja, consentindo que nele se
introduzam tantos abusos, tolerando que nos templos
as festas se façam até de noite, onde se
desenvolve com escândalo notável a perversidade
daqueles que nenhum caso fazem da celebração dos
santos mistérios.”
Encerrando o aviso, Feijó ordena aos bispos “a
mais escrupulosa escolha das pessoas destinadas ao
serviço da Igreja que, por suas moralidades e instrução,
sejam capazes de lhe servir de ornamento; a severidade
em punir canonicamente os que se desviarem das
regras...” (ALMEIDA, 1951, p. 75-76).
O COMEÇO DO FIM
Um incidente de ordem religiosa, no entanto,
duraria mais que o razoável. Trata-se da indicação de
Antônio Maria de Moura, em 30 de abril de 1833, para a
diocese do Rio de Janeiro. Companheiro de idéias de
Feijó, era-lhe recusada, por Bonifácio VIII, a bula de
confirmação. Os pretextos de Roma baseavam-se nas
idéias do padre quanto ao celibato clerical, além do fato
de o mesmo ser filho de pais incógnitos, mesmo caso de
Feijó, o que o feriu profundamente.
Não tardou o assunto a assumir caráter político,
como era de se esperar, e “deputado houve que se
ergueu, em sessão de 6 de junho de 1835, para propor
simplesmente a separação da Igreja brasileira da Igreja
romana.” (MORAES, 1929, p. 54).
Mesmo não indo a questão adiante, nota-se mais
uma vez a intromissão do governo nos negócios da
Igreja. O episódio, no entanto, marcaria Feijó, posto que
seria ele protagonista de igual problema, quando de sua
nomeação para o bispado de Mariana, como se verá
oportunamente.
D. Romualdo, por sua vez, continuava a não se
deixar dobrar facilmente perante as tentativas de Feijó,
e, em 16 de agosto de 1833, numa representação à
Assembléia Geral Legislativa, apresenta as linhas
mestras de uma reforma.
A Igreja, portanto, plenamente desperta e
consciente dos riscos que corria, passa à ofensiva. O
primeiro item evoca a possibilidade de ver surgir no
Brasil uma Igreja “diferente”, com um clero consentâneo
à realidade desejada, formado em seminários. Note-se
ainda o desejo de “participação” e “proteção” do
governo nos projetos da Igreja, bem como a referência
ao Concílio Ecumênico de Trento:
“Quereis ver, Augustos e Digníssimos
Senhores, florescer ainda neste abençoado
Império a beleza e a disciplina da Igreja, e o
tocante espetáculo de um clero respeitável
por seu exemplo e doutrina? Elevem-se ao
Episcopado homens tais, quais descreve o
grande Apóstolo das Nações, cheios de zelo
pela honra da Igreja, e pelo bem espiritual
dos Povos cometidos ao seu cuidado; e,
liberalizando-lhes a vossa confiança e
proteção, auxiliai-os em seus projetos,
sobretudo no estabelecimento de seminários,
que tanto mereceu a solicitude dos Padres
de Trento, e os desvelos da nossa mesma
legislação existente, garantindo aos bispos
no Alvará de 10 de maio de 1805 a execução
dos Decretos daquele concílio, e os socorros
necessários para tão previdentes
fundações.” (AZZI, 1974, p. 475-476).
A formação dos seminaristas é fonte de
preocupação para o prelado, que insiste no tema e,
realista, também não se furta a lembrar os desvios do
clero:
“Os aspirantes ao sacerdócio, formando-se
desde os primeiros anos à sombra do
Santuário, e debaixo das vistas do seu
prelado, na piedade e na ciência, farão
conhecer sem os disfarces da hipocrisia sua
índole, seus talentos e vocação ao estado
eclesiástico; e tornando mais fácil o
discernimento e acerto na escolha, pouparse-
á aos bispos a dolorosa necessidade em
que muitas vezes se acham de impor as mãos
em pessoas que eles mal podem conhecer e
experimentar; e à Igreja tantas lágrimas, que ela não
1834 inicia-se tenso. É o terceiro momento de
tentativa da ação reformista do grupo de Feijó, que
entrega a D. Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade
(1827-1847), bispo e Presidente do Conselho Geral de
São Paulo, uma Representação, em que lhe é solicitada a
dispensa do celibato clerical em sua diocese. É no
bispado de D. Manuel Joaquim, segundo Augustin
Wernet, que “a falta de ‘ilustração’, o engajamento em
atividades econômicas e lucrativas e a politização do
clero paulista chegou ao auge.” (WERNET, 1987, p. 75).
Em nosso entender, não havia melhor momento
nem melhor bispo para a Representação, uma vez que
“D. Manuel vivia como o seu clero: além de ser
fazendeiro, dono de escravos, apaixonado caçador, teve
também destacada atuação política em São Paulo, desde
os tempos da Independência até sua morte em 1847,
sendo membro militante e um dos chefes do Partido
Conservador. Foi várias vezes vice-presidente da
Província, membro do Conselho Geral da Presidência
da Província, deputado à Assembléia Geral e Provincial
e candidato ao Senado.” (WERNET, 1987, p. 80).
A Representação, de 14 de janeiro, baseia seus
argumentos em dois pontos: um, de ordem moral, visava
corrigir a situação do “clero amasiado”; e outro, de
caráter demográfico, com o objetivo de aumentar a
população.
O documento é claro em seu objetivo, não se
furtando de informar ao bispo o que ele já bem sabia: “É
doloroso, mas é preciso confessá-lo: a lei do celibato é
letra morta, só existe de direito, e não de fato. Nem se
atribua esse mal à geração presente. Ele é antiquíssimo,
tão antigo como a própria lei. Não observada a lei, não
só são criminosos os transgressores dela, como todos
aqueles que conduzem ao erro o mau exemplo da classe
que mais deve influir na moral por ser a escolhida e
destinada ao serviço do culto.” (LUSTOSA, 1985, p.
26).
Prossegue a Representação, justificando-se a
dispensa como panacéia universal para a questão da
moralidade do clero:
“Se pois para o exercício do ministério
sacerdotal se exige uma consciência pura,
se, dispensada a lei, os ministros do culto
não têm tão freqüentes ocasiões de pecar,
por isso mesmo se estabelece e promove a
decência do mesmo culto, cessa o escândalo
dos fiéis, tira-se o motivo da censura, dos
insultos e dos sarcasmos com que os ímpios
satirizam e zombam da religião, confundindo
a pureza e santidade desta com a de seus
ministros.” (LUSTOSA, 1985, p. 26).
O segundo argumento, de ordem demográfica, é
então exposto. Chega a ser divertido o jogo de palavras
que é feito entre “aumento de casamentos” e
“diminuição dos celibatários,” dando a parecer que a
maioria brasileira era composta por padres:
“Mas não é só a Igreja que lucra com
a dispensa dessa lei. É também o Estado.
O Brasil, um império vastíssimo por sua
extensão territorial, tem uma população
muito limitada, por conseqüência convémlhe
necessariamente promover todos os meios
de aumentar a sua população e torná-la mais
moralizada. O aumento dos casamentos, ou
por outra, a diminuição dos celibatários, na
opinião dos mais hábeis publicistas,
consegue estes dois fins: aumenta a
população, pois que, pondo a prole nas
circunstâncias de obter na casa paterna
todos os socorros que demandam os filhos,
estes não ficam abandonados. Torna a
população mais moralizada, não só pela
melhor educação da mocidade, como porque,
tornando-se mais freqüentes os casamentos,
evitam-se as desgraças de muitas vítimas da
cessa de derramar pelos escândalos dos seus ministros."
(AZZI, 1974, p. 476).
educação e do mau exemplo.” (LUSTOSA,
1985, p. 26).
Em assunto tão grave, a castidade não poderia
ser esquecida. No entanto, este “estado de perfeição
angélica” se restringiria tão somente ao religioso que a
quisesse adotar, e até as palavras de Cristo foram
tomadas como argumentação:
“Nem se diga que se pretende destarte
menosprezar a virtude da castidade. Não.
Aqueles que se conhecem com forças para a
sua prática, aqueles a quem a graça divina
levar a esse estado de perfeição angélica,
têm toda a liberdade de praticarem essa
virtude. Mas não se exija da condição
humana o que é superior às suas forças, não
se imponha uma lei que o mesmo divino
Salvador não impôs ao homem, porque não era
necessária para a salvação.”
(LUSTOSA, 1985, p. 27).
Ao receber a Representação, D. Manoel
Joaquim, ainda que inclinado a aceitar, posto que liberal,
mas não ingênuo, posto que bispo, decide, em nosso
entender, ganhar tempo. E como é costumeiro nas
autoridades que não desejam tomar unicamente para si
as conseqüências do processo decisório, submete o
documento ao exame de vinte e uma personalidades,
bem como ao Cabido Diocesano.
Este, educadamente, transfere novamente ao
prelado a questão nos seguintes termos: “[...] conquanto
julgue a dita Representação baseada em razão e justiça,
contudo julga também que só a V. Exa. poderá decidir,
pois ninguém melhor do que V. Exa. conhece o estado
do bispado e as premissas alegadas na dita
Representação.” (LUSTOSA, 1985, p. 15).
Mesmo com o processo terminando por ser
arquivado, o grupo paulista capitaneado por Feijó fará
mais uma tentativa, a última, para levar adiante a
reforma na Igreja: uma Constituição Eclesiástica para o
Bispado de São Paulo.
Dessa vez a idéia baseava suas linhas gerais em
proposições do Concílio Ecumênico de Trento, que
determinavam aos Ordinários adaptações às normas
conciliares que se fizessem necessárias ao bom
funcionamento das dioceses.
Considerando-se que no Brasil ainda eram as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de
1707, que norteavam os bispos em suas decisões, ficava
clara a necessidade de “mudanças” pelo grupo paulista,
consubstanciadas na proposta da Constituição
Eclesiástica.
Especificamente, destacam-se como fontes
utilizadas pelos reformadores “o Sínodo de Pistóia, a
Constituição Civil do Clero Francês de 1790 e os
projetos reformistas elaborados nos estados meridionais
da Alemanha.” (WERNET, 1987, p. 86).
O padre Diogo Feijó prosseguia à frente das
manobras, desta vez menos rígidas e radicais, e o texto
não propunha a supressão pura e simples do celibato,
deixando algumas saídas, em artigos, que permitiam aos
bispos regular a matéria. Diz o prefácio à Constituição:
“Nenhuma lei foi derrogada. As
comissões reconhecem que este direito
compete só aos Concílios Gerais, ou ao
Soberano Pontífice, nos casos de manifesta
utilidade; mas como seja inegável o direito
divino dos Bispos que providenciarem a
salvação da parte do rebanho, que pelo
mesmo Deus lhes foi confiada e que ninguém
melhor que eles pode ser inteirado da
necessidade ou utilidade da parcial
revogação ou dispensa da lei em benefício
dos fiéis de suas dioceses, são declaradas
as dispensas que o uso, a prática constante
deste bispado e suas peculiares
circunstâncias tornam necessárias.”
(LUSTOSA, 1985, p. 100).
Não obstante ser D. Manuel Joaquim Gonçalves
bastante simpático à causa de Feijó, mais uma vez o
projeto não passou, frustando definitivamente os
objetivos do grupo paulista. As palavras de Augustin
Wernet definem bem a situação:
“Na fase final da organização do Estado
brasileiro, a maioria dos políticos e,
sobretudo, os principais conselheiros de D.
Pedro II chegaram à convicção de que as
idéias do conservadorismo e do catolicismo
ultramontano serviriam de melhor
fundamentação e justificação para a ordem
vigente, do que os princípios liberais e as
idéias do catolicismo à altura do Século das
Luzes.” (WERNET, 1987, p. 87-88).
No mesmo ano de 1835, Feijó assume como
regente único do Império, e, na véspera de sua posse, 11
de outubro, comunicam-lhe que fora nomeado por seu
antecessor Lima e Silva para o bispado de Mariana, em
virtude do falecimento de D. José da Santíssima
Trindade. É também nesse ano que Feijó solicita ao
Marquês de Barbacena, então em Londres, providências
para a vinda de Irmãos Morávios, protestantes, que se
dedicassem à educação dos indígenas. Foi um grave erro
político de Feijó, pois tal projeto foi apresentado por D.
Romualdo Seixas como mais um argumento de
oposição, diante do qual Feijó renunciaria.
Consciente de que Gregório XVI recusaria a
bula de confirmação, como fizera anteriormente com seu
amigo Antônio Maria de Moura, habilmente “mandou
arquivar a carta de apresentação que lhe dizia respeito,
nenhum andamento deu às bulas de confirmação, e, sem
fazer constar sua renúncia, limitou-se a deixar vaga a
diocese.” (MORAES, 1929, p. 52).
Ficava entretanto a mágoa, e, em 1836, na
abertura da primeira sessão legislativa, Feijó manifestou
o claro desejo de separar a Igreja brasileira da de Roma.
Seu poder era pleno, e a esse respeito a exegese de
Vilhena de Moraes é primorosa:
“O augustiniano de Eisleben tinha a
investidura sacerdotal, mas não o poder
político; o marido de Ana Bolena, o
poder político, mas sem a investidura
sacerdotal. Feijó, porém, possuía uma e
outra coisa, com a circunstância a mais
de já ter sido, sem usurpação própria,
anteriormente indicado para receber a
plenitude do sacerdócio. Um golpe, tão
somente, e, lisonjeadas sem efeito ainda
muito vivos de uma completa autonomia continental em todos os domínios, estaria feita a separação É natural que tais pretensões excedessem todo o
bom senso, e os próprios estadistas julgaram as idéias de
Feijó como uma ameaça à unidade política do Império.
Da parte da Igreja era preciso, além de combater
o Padroado, deter a ação de Feijó, cujos procedimentos
políticos desenhavam no horizonte praticamente um
quadro de cisma.
Mais uma vez D. Romualdo entra em cena,
agora com o auxílio de Bernardo de Vasconcelos, cuja
atuação foi a de contrapor o pensamento liberal de Feijó
à disciplina da Igreja. Em sua resposta a Feijó, ele
afirma: “Tornar-se-ão independentes as igrejas
nacionais, sem nexo estável com o pai comum dos fiéis,
com essa cadeira eterna sobre a qual Jesus Cristo
fundou sua Igreja. Desaparecerá o catolicismo, pois não
há catolicismo sem unidade.” (MORAES, 1929, p. 58).
Os ataques, porém, atingiram Feijó em cheio,
quando D. Romualdo e Vasconcelos o acusaram de ter
mandado contratar os Irmãos Morávios para a catequese
dos índios. Sendo os Morávios luteranos, tal fato
tornava-se inconcebível em um país católico. Era o fim.
A 19 de setembro de 1837, premido pela
oposição, Feijó renunciava, e, menos de um ano após, a
16 de julho de 1838, faz publicar no Observador
Paulista uma retratação, deixando livre o caminho para
a grande ofensiva que a Igreja, na figura pioneira de D.
Romualdo Seixas, desfechará em favor de sua
autonomia, uma vez suplantado o risco de secessão.
Feijó voltaria, ainda que de forma ocasional, aos
velhos temas, quando no Senado do Império, entre 1838
e 1839; e algumas outras manifestações regalistas
prosseguiram, como exemplo, o chamado “recurso à
Coroa”, consolidado pelo artigo 30 da lei de 5 de
fevereiro de 1842, que consistia em apelar ao poder civil
sobre abusos ou improcedências dos tribunais
eclesiásticos.
A posição da Igreja, contudo, estava assegurada.
A ameaça pior já passara, e os problemas agora eram
outros.
O tempo de Feijó passara. A Revolução Liberal
de 17 de maio de 1842 termina por provocar sua prisão.
A 15 de maio do ano seguinte faz sua defesa no Senado.
É seu “canto de cisne”.
Morre em São Paulo a 10 de novembro, quando
então as forças conservadoras ultramontanas já
delineavam claramente seu papel no comando da Igreja,
“conduzindo aos poucos o catolicismo a satelitizar-se
progressivamente ao tipo de catolicismo dominante na
Europa.” (WERNET, 1987, p. 88).
ANOTAÇÕES CONCLUSIVAS
A presença de padres na política era bastante
comum no Império. Feijó, no entanto, sobressaiu-se
como um revolucionário nos assuntos pertinentes à
questão do celibato clerical. Se por um lado ia de
encontro aos interesses da Igreja Católica, da qual era
sacerdote, por outro propunha que a mesma admitisse
uma realidade bem típica à época: a grande quantidade
de padres amasiados e com filhos. Essa linha de
pensamento, tão cartesiana na resolução de problemas,
era típica de religiosos que beberam nas águas do
catolicismo iluminista. Precisava ser combatida, como
de fato o foi, pela Igreja.
Fechada em sua redoma doutrinária, em face dos
ataques que recebia desde os acontecimentos de 1789, a
reação dos papas e do episcopado ao que se poderia
denominar de modernidade foi de total intransigência a
qualquer pensamento que ameaçasse suas posições. Com
perdas e ganhos, a verdade é que, mais uma vez, a Igreja
saiu vitoriosa. Feijó, por sua vez, menos que um
sacerdote imbuído na defesa de sua Igreja, representava
muito mais o político cioso da defesa dos interesses do
governo a que servia - sua carreira bem o mostra. No
entanto, errou. A prática moralizadora da Igreja servia
também mantenedor de controle social. A supressão do
celibato, portanto, não atendia aos interesses de ambas
as instituições. Venceu a Igreja e o conservadorismo, tão
bem representado pela Reforma Ultramontana, tema
fascinante, que abordaremos em uma próxima
oportunidade.
ABSTRACT
The aim of this study is to present the clashes between
Priest Diogo Antônio Feijó (1784-1843) and the
Catholic Church. The majority of the researchers usually
indicates Feijó’s political performance as a governor
during the regency period, “paulista” deputy under
Lisbon Court (1821), general deputy (1826-1829 and
1830-1833) and senator (1833) in other themes besides
the Church History. His quarrels were relegated in
secondary plans against the episcopacy time, due to his
defense for celibate supression. This facet of Feijó is
proposed here – the priest who searches his own Church
interests – as the invitation to great studies of historians.
KEY-WORDS: catholicism, clerical celibate, Brazil
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WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no Século XIX.
São Paulo: Ática, 1987.
Isnard de Albuquerque Câmara Neto é Professor
Colaborador Adjunto no Departamento de Ciências
Sociais e Letras da Universidade de Taubaté.

Texto extraído da internet.

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